Foi a exclusão marcante "pela cara de pobre" na
disputa pelo emprego que a levou a sair da cidade em busca de mais
oportunidades. Em Belo Horizonte, morou na rua por meses e foi empregada
doméstica por cinco anos. "De onde eu venho, levo uma lição de disciplina,
coragem, determinação, de não desistir. É ilusão achar que todos estão no mesmo
patamar de concorrência aos postos de poder. Meritocracia é uma ilusão em
diferentes níveis do discurso."
Quando Antônia chegou à capital mineira acreditou que
conseguiria abrigo. "As pessoas lá na minha cidade diziam 'vai
que vou te dar uma força', mas aí, quando você chega na porta da casa
delas ouve que elas não podem te receber porque a casa é pequena."
Acolhida por parentes, logo arrumou trabalho como empregada doméstica mas com
salário impossível de bancar aluguel.
"Num determinado dia, ao terminar meu serviço de
faxina, fui convidada a me retirar da casa onde estava. Fiquei sem ter onde
dormir e fui para um ponto de ônibus aguardar o horário de voltar para o trabalho
e assim fui ficando." Foram cerca de seis ou sete meses na rua até que uma
desconhecida a recebeu em sua casa.
Sem qualquer romantização de sua história, ela conta que o
percurso da doméstica que chegou ao alto cargo do Judiciário foi uma longa
caminhada, passo a passo, que começou quando, aos 22 anos, concorreu ao
primeiro concurso público para ser oficial de Justiça, que exigia apenas o
ensino médio. "Foi o mais marcante, porque me tirou da rua e me deu o
mínimo para sobreviver."
O curioso foi a saída que Antônia encontrou para estudar para a prova: a partir de restos de páginas de apostilas preparatórias descartadas no lixo. Fui até um cursinho e lá descobri que custava muito além do que eu poderia pagar com meu salário de doméstica. Então, passei a recolher as cópias manchadas ou inutilizadas que outros alunos jogavam no lixo.
Em 1985, o novo emprego apresentou o mundo do Direito à
Antônia, carreira com a qual passou a sonhar, e permitiu que a ex-trabalhadora
doméstica fosse morar numa pensão e, depois, cursar a faculdade. A partir daí,
ela conta, "todos os outros concursos foram só concursos. Foram muitos,
muitos. Mas não tiveram aquele impacto. A grande mudança já havia acontecido lá
atrás".
Após anos de dedicação ao direito e inúmeros concursos
prestados até alcançar a magistratura, Antônia se diz realizada com a sua
atuação e as possibilidades de olhar para os outros como muitas vezes desejou
ser olhada durante sua trajetória. "Muitas vezes você não responde àquilo
que a pessoa quer ouvir, mas você pode dar uma resposta para ela com todo o
respeito, atendê-la, ter abertura e empatia."
Como juíza criminal, ela sabe que nem sempre oferece a
providência que o condenado quer; seu trabalho é impor penalidades. "Mas
sempre olhando para o ser humano além do delito." A situação rotineira de
hoje a remete ao ofício do passado, quando foi empregada doméstica. "Havia
uma patroa que fazia questão de manter uma enorme distância de mim",
conta. "E isso, justamente, na época em que eu passava a noite na rua, no
ponto de ônibus."
Antônia chegou a pedir para morar no quartinho dos fundos da casa da empregadora, mas o que ouviu, foi que "negrinha dentro de casa é tentação pra marido e filho". "A negrinha, no caso, era eu", diz a magistrada, ciente de que o preconceito de raça e classe se perpetua nos corredores da Justiça. Diante de um Brasil ainda tão injusto, a juíza deixa sua mensagem para o ano que começa:
"Com as ferramentas que tiver em mãos, você conseguirá fazer a sua mudança. Não se compare com outros, comparação só existe quando duas pessoas saem do mesmo ponto de partida. Como isso não acontece, dentro das suas possibilidades, seja você a senhora do seu destino".
Com informações do Flávia Martinelli (UOL).
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